segunda-feira, dezembro 15, 2003

CAÇADAS EM ÁFRICA II

O Banco Nacional Ultramarino organizou em Moçambique a maior reserva de vida selvagem que porventura existiu em África na década de setenta. A Safrique, como foi designada, reuniu uma meia dúzia de coutadas, numa área de dimensão superior à de Portugal, para explorar o turismo cinegético, baseado num abate controlado de animais e no safari fotográfico. Reunia aquele espaço uma impressionante fauna selvagem, rica em espécies e em quantidade de animais. Desde os felinos aos pequenos primatas e às aves raras, de tudo existia naquelas centenas de quilómetros quadrados de florestas, planícies e rios, com uma extensa praia de areia muito branca e mar azul, ao longo da costa. Nunca, em lugar algum, penso que possa ter existido algo tão magnífico e tão grandioso. Era a natureza no seu esplendor.
Em todas as coutadas da Safrique existiam acampamentos, feitos de madeira e colmo, constituindo pequenos aldeamentos, na aparência semelhantes às aldeias indígenas, mas dotados de todos os requisitos de qualquer hotel de cinco estrelas.
O custo dos safaris só era acessível a pessoas muito ricas, idas principalmente dos Estados Unidos e da Europa. Por ali passaram grandes empresários, políticos de renome, estrelas de cinema e outros que puderam pagar o privilégio de apreciar algumas maravilhas da natureza.
Lembro-me de um palanque construído no cimo de algumas árvores junto a uma pequena lagoa, onde no início ou no fim do dia as pessoas se juntavam em profundo silêncio para ver ou fotografar os animais que pela fresca ali iam beber. Qualquer animal selvagem é de uma beleza única e incomparável. O leão, com a sua enorme juba, a cor da sua pele e o porte sobranceiro é uma obra extraordinária da natureza. Mas o mesmo se pode dizer do leopardo, da girafa, das zebras com as sua magníficas listagens, e tantas outras espécies, algumas infelizmente em vias de extinção. Mas a impressão que causam é maior quando são observados no seu habitat natural, onde se acrescenta a beleza do cenário, também único.
O pessoal que trabalhava nos acampamentos incluía, obviamente, caçadores-guias profissionais, que organizavam as deslocações diárias e asseguravam uma escolha criteriosa dos animais a abater, quando era caso disso, com preferência pelos machos mais velhos e com absoluta exclusão de fêmeas ou crias. Eram responsáveis também pela segurança dos turistas e pelo bom sucesso da caçada. No fim do dia, no acampamento, perto de uma enorme fogueira que afastava o cacimbo e os mosquitos, participavam com os seus clientes na euforia do momento, em que se lembravam os aspectos mais significativos da jornada, acompanhando a conversa com champanhe, wiskie ou vinho das melhores marcas e, para quem apreciava, de um bom charuto. Normalmente os caçadores-guias eram pessoas muito interessantes, pela experiência das suas vidas e pelo refinamento resultante do convívio com as personalidades que acompanhavam. Guardo, porém, uma recordação especial do velho Pierre, que ficou associada a uma tragédia de triste memória.
Uma família americana, constituída pelos pais e uma jovem de dezoito anos, esbelta, bonita e alegre, fizeram uma safári, que decorreu muito bem até ao fim, Na hora do regresso, a filha pediu para ficar mais uma semana. O seu prazer predilecto era o de se deslocar à praia, onde sózinha no imenso areal se despia e nua mergulhava nas ondas, apreciando a frescura das águas sob um o sol quente e brilhante. O velho Pierre, que podia ser seu pai (e talvez até avô), mantinha-se discretamente a alguma distância, procurando não interferir com a liberdade e o prazer que a jovem tirava daqueles momentos únicos, naquele espaço magnífico. Os pais criaram uma grande confiança no seu já amigo Pierre e resolveram aceder ao pedido da filha, que assim ficou, para morrer naquele paraíso, vítima de um fascinante mas perigoso animal selvagem, que cruzou o seu destino.
Um dia, um dos criados do acampamento anunciou que um leopardo fora ferido e fugira, não tendo ainda sido encontrado. Cabia ao Pierre ir procurá-lo e abatê-lo. Um animal selvagem ferido era um perigo para as populações e para os turistas. A jovem quis acompanhá-lo, ao que ele recusou. Mas ela não sabia aceitar recusas e tanto insistiu que acabou por convencer o velho caçador, que não resistiu aos encantos da jovem. Durante horas seguiram as pistas deixadas pelo leopardo e, pouco a pouco, aproximaram-se do local, na floresta, onde provavelmente se encontrava. O leopardo é um animal ágil, trepando às árvores como um gato e podendo esconder-se a coberto das folhas e dos galhos.
Não sei se alguém, alguma vez, chegou a saber exactamente o que se passou. Ao que parece o leopardo caiu de surpresa sobre a jovem. O velho Pierre, ao tentar desesperadamente abatê-lo, disparou, mas o tiro atingiu a jovem...

CAÇADAS EM ÁFRICA

O Jeep avançava de vagar pelo meio do capim e dos arbustos. Era perto do meio dia e o sol caía a pique, provocando um calor intenso. No meio da planície, ao fundo, iniciava-se uma mata. O nosso guia, um africano experiente como pisteiro, que seguia atrás na caixa aberta da viatura, bateu na capota, enquanto com o dedo procurava assinalar ao longe, na direcção das árvores, algo que ninguém conseguiu perceber. Em tom baixo, chamou a atenção para umas aves brancas pousadas nas árvores. Era a ave da carraça, que acompanha sempre as manadas de búfalos. Alimentam-se dos parasitas que se escondem na pele grossa e rugosa dos animais, num pacto de sobrevivência de interesse mútuo. Lentamente, o Jeep foi avançando na direcção indicada pelo guia. De repente, os animais que repousavam e fugiam ao calor no meio das árvores, ao aperceberem-se da nossa presença, juntaram-se numa clareira. Eram certamente algumas centenas e aquela presença maciça impressionava e assustava. Em pouco tempo, formaram um dispositivo de combate, em círculo, com os machos mais corpulentos à frente, as fêmeas no meio e as crias no interior do grupo. Depois de um breve momento, com o Jeep parado e todos os seus ocupantes no mais profundo silêncio, viraram as costas e iniciaram uma corrida, fugindo daquela ameaça que havia surgido no meio da planície. Acelerámos em perseguição e alguns tiros foram disparados. Dois animais corpulentos caíram e algumas crias começaram a deixar-se atrasar. De repente, como que obedecendo a um sinal, todos aqueles animais pararam e voltaram-se na nossa direcção, tendo à sua frente o que, pelo seu aspecto possante, era certamente o chefe da manada. Os travões foram metidos a fundo. E durante breves segundos o confronto pareceu inevitável. Era aterrador imaginar uma eventual carga sobre nós. A imobilidade e o silêncio durou alguns segundos, findos os quais o chefe da manada deu meia volta e continuou o seu caminho seguido por todos os outros, em corrida, mas sem qualquer sinal de pânico e com toda a manada bem organizada. Para nós a caçada havia terminado. Os dois búfalos abatidos eram suficientes e a experiência fora avassaladora.

sexta-feira, dezembro 05, 2003

A TÉCNICA DO BÉBÉ

Desde que sou avô comecei a ter a oportunidade de observar, com mais atenção do que quando era pai, os comportamentos dos bébés e a forma como comunicam com as pessoas e o ambiente que os rodeiam.
Sorriem, palreiam, agitam-se, estendem os bracitos quando alguém se propõe pegar neles ao colo, aceitam ou recusam a comida que lhes querem dar, mas basicamente impõem a sua vontade. Para isso choram, para chamar a atenção. Se necessário avolumam o choro. E se não são atendidos, iniciam uma gritaria que acaba normalmente pela realização do que desejam. Quase sempre as pessoas acabam por ceder para não serem incomodadas. Mas tenho observado também que se os adultos permanecem firmes o bébé compreende que nada vai obter e desiste.
E assim há aqueles que só adormecem ao colo e outros que aceitam ir para a cama sem chorar, consoante os resultados (ou a falta deles) obtidos anteriormente com a gritaria.
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Também vejo televisão e observo as manifestações de rua, com muita gritaria à mistura, e as greves, que pretendem perturbar e incomodar todo o mundo.
É a técnica do bébé aplicada pelos adultos, muito recomendada pelos sindicatos.
A experiência com os bébés recomenda que não haja cedências perante essas exibições.

quinta-feira, dezembro 04, 2003

CINQUENTA POR CENTO

A regra estatística de que cinquenta por cento dos portugueses anda a tentar enganar a outra metade não é inteiramente exacta. Na verdade há portugueses que tentam enganar todos os outros.
Por exemplo:
- os que utilizam facturas falsas para receberem IVA pago pelos outros.
- os que falseiam receitas médicas para receberem contribuições que todos pagam.
- os que declaram rendimentos mínimos quando usufruem rendimentos máximos.
- os que criam obstáculos à resolução de problemas como fonte de angariação de luvas.
- os que utilizam informação privilegiada para obterem ganhos ilícitos.
- os que utilizam poderes democráticos para obterem favores não democráticos.
- etc.,etc..

terça-feira, dezembro 02, 2003

ESPECTÁCULO A HORAS

Numa viagem que fiz ao Rio de Janeiro há alguns anos atrás, fui ao Canecão assistir a um espectáculo de Caetano Veloso, que estava anunciado para as 21 horas. As 21 e 15 nada tinha acontecido, excepto que as pessoas continuavam a entrar. Meia hora depois o público começou a dar sinais de impaciência. Passados 45 minutos havia assobios e uma pateada ensurdecedora. Pouco depois o artista entrou no palco e começou a cantar. Fez-se silêncio e os aplausos foram intermináveis.
Dias depois, entrei num outro teatro onde Jô Soares dava o seu "one man show".
Ao observar os vários cartazes existentes no hall, pude ler num deles comentários da imprensa que enalteciam todo o espectáculo, desde a qualidade da montagem aos dotes excepcionais do grande artista que é, como todos sabemos, o GORDO.
E a terminar dizia que Jô Soares era não só o maior artista vivo do Brasil, como o único que começava o seu espectáculo a horas.
Amante como sou da pontualidade, foi com entusiasmo que comprei os bilhetes de ingresso.
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O espectáculo começou com meia hora de atraso.
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Com estes antecedentes fiquei admirado quando tive conhecimento de que o actor brasileiro António Fagundes, interpretando uma peça de teatro em Portugal, anunciou previamente que as portas de entrada na sala seriam fechadas, impreterivelmente, à hora do início do espectáculo.
E fiquei espantado quando soube que cumpriu a regra logo no dia da estreia, deixando surpreendidos e indignados umas dezenas de portugueses.
O meu espanto e admiração tem a ver com o caracter do artista.
António Fagundes vem de um País que não usa relógio e sabe muito bem que para os portugueses chegar tarde é uma questão de estatuto.
Quando lhe perguntaram se pretendia castigar os retardatários, respondeu simplesmente que queria fazer respeitar os espectadores pontuais e os artistas.
Aplaudo de pé António Fagundes.
Além de grande artista é também um homem educado e corajoso.
Não vai endireitar o Mundo, mas passa a ser, para mim, uma referência a ter em conta.

AS NOSSAS OPÇÕES

Não é possível saber qual teria sido o resultado das opções que não fomos fazendo ao longo da vida.
A certa altura escolhemos um determinado percurso, quando poderíamos ter preferido outro. Decidimo-nos por determinadas perspectivas no presente, em detrimento de outras no futuro. Em certo momento preferimos a segurança ao risco ou o inverso. De uma forma geral ignoramos conselhos de pessoas mais experientes e decidimos por intuição. Ou aceitámos esses conselhos para fugir a responsabilidades.
O que teria sido a nossa vida se as nossas opções tivessem sido outras?
Perante a incapacidade de encontrar uma resposta, muitas pessoas, certamente pessoas felizes, confortam-se afirmando que se fosse hoje teriam decidido da mesma maneira.
Mas a vida demonstra que todos cometemos erros com frequência e isso certamente aconteceu nas decisões que influenciaram a vida que tivemos.
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A questão é mais complexa quando as nossas decisões afectam a vida de terceiros.
Ao nível familiar, por exemplo, quando influenciámos os filhos a fazerem opções morais ou materiais, ou quando procuramos encaminhá-los nas escolhas profissionais ou mesmo sentimentais.
A nível das organizações ou das empresas quando os erros de gestão afectam trabalhadores e colaboradores.
A nível social quando se exercem cargos políticos ou de governo.
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Curiosamente, quanto mais grave é a consequência dos erros eventualmente cometidos menos frequente é o reconhecimento de que eles podem ter existido.
Nunca ouvimos um político aceitar que se tenha enganado.
Nem mesmo quando escrevem as suas memórias e a evidência demonstra os erros cometidos.